quarta-feira, 30 de abril de 2008

O impossível nas costas há 94 anos

Diz-se em todo o mundo que Angelina Jolie é uma mulher muito generosa. Não à toa, posto que corram à boca não muito discreta as nababescas somas doadas pela musa às causas sociais.

Consideremos então que ser generoso é doar muito daquilo que se tem, mesmo que de sobra.Sendo assim, uma antiga passageira do trem das onze, a simpática Dona Emma, equipara a multimilionária atriz ao Tio Patinhas neste quesito. Uma figura notável nas vizinhanças do Jaçanã, apesar de sua arqueada estatura não superar metro e meio, se tanto.

Como se encontrá-la numa esquina de Bauru fosse possível, lembro-me do ruído do choque entre o chão e a gasta ponta metálica do guarda-chuva que serve de apoio a Dona Emma para suas diárias caminhadas matinais. Com terna saudade, imagino cruzar-lhe o caminho e pararmos para conversar um pouco, indiferentes ao desespero apressado do mundo, como era de praxe dos meus sábados.
Conheci Dona Emma num dos seus dias de caminhada, e desta data já nos afastamos mais de uma década. Supunha que caminhasse para manter a saúde, seguindo alguma orientação médica. Era plausível, aparentava uma idade avançada, que naturalmente requer especiais cuidados.

Dona Emma é amiga de minha mãe. Conheceram-se nas missas, muito católicas ambas. Sorridente, puxou conversa com um "Bom dia!", produto em escassez na metrópole. Respondi-lhe por educação e, como se fosse conseqüência natural de um comentário gentil, conversamos por cerca de duas horas. A prosa tornar-se-ia uma rotina, a partir dessa data.

Dona Emma fala bem. Não é uma questão de retórica: teve pouca educação formal, ainda que sua inteligência seja facilmente percebida; tão pouco sua voz sugere alguma atenção especial, posto que sua orgulhosa idade se faça notar também pelo som das tão usadas cordas vocais. Escutá-la é encantador justamente pelo vigor que apresenta. A rouquidão não a impede de contar suas tantas histórias.

Em tempos de crianças que saem adultas dos jardins de infância, a doce velinha representa a pureza que a contemporaneidade sacrificou.
Nas conversas que tinha com Dona Emma, ia descobrindo um pouco mais de sua história, que criou sete filhos sem a ajuda do marido alcoólatra, superou dificuldade de trabalhar e sustentar a prole, mesmo com o parco estudo e contra os preconceitos da sociedade da primeira metade do século XX, que não os escondia tão bem como faz a atual, e nem pretendia escondê-los.

Não foram poucas as vezes que doutores estimaram o fim das histórias de Dona Emma. Uma gravidez delicada, um grave acidente na cozinha que lhe queimou um quarto do corpo, um estômago de funcionamento tão lento que a impede de comer muito mais que um pássaro, entre outros revezes, quase regulares, dão aos médicos o perdão pelo prognóstico equivocado; à Dona Emma, apenas enriqueciam-lhe o acervo de surpreendentes histórias.

A mais impressionante passagem da vida de Dona Emma, no entanto, acontecia diante dos meus olhos. Aquela senhora não caminhava por designação médica. É muito cética à ciência. E depois de desmenti-la tantas vezes, seu ceticismo merece respeito, autoridade até.

Donna Emma não caminha apenas aos sábados. Faz o mesmo caminho diariamente, com exceção os domingos e feriados, quando o trajeto ao Hospital Geriátrico e de Convalescentes D. Pedro II era trocado pelo da Igreja de Santa Terezinha, onde se reunia grande parte da vizinhança, predominantemente católica.

Dona Emma supera diariamente quase um quilômetro de terreno acidentado até o Asilo dos Inválidos (nome original do Hospital) que, segundo a lenda e a qualidade das instalações, foi construído na época do império

Com o mesmo sorriso que Dona Emma me conta satisfeita do seu dia, chega ao asilo para ajudar os funcionários a, como ela mesma diz, cuidar dos “velhinhos”.

São pouquíssimos os enfermos e idosos com mais de noventa anos. A maior parte tem seus setenta. Todos com histórias impressionantes sobre carreiras de sucesso que ruíram, outros que amaram até que a promessa do altar fosse consumada, boêmios veteranos, que consumaram a vida nos prazeres da noite e hoje, nos leitos da instituição, aguardam a visita de parentes ou de Caronte. Muitas vezes a visita dos primeiros só ocorre momentos antes ou logo após a visita do barqueiro da mitologia. Para alguns, nem essa ocasião lhes permitirá rever seus familiares.

É por amenizar a carência dos enfermos e dos velhinhos que Dona Emma é tão brilhantemente generosa. Vai ao hospital levar companhia e carinho a pessoas tão fragilizadas pela perda de vitalidade ou de esperanças. Vai tratar das dores da alma dos internos, tão mais cruéis que as do corpo, tratada pelos médicos.

A solidariedade de Dona Emma ajuda a explicar como ainda existam pessoas que utopicamente acreditem em um mundo melhor. O altruísmo dessa senhorinha, que parece aumentar a cada página de calendário que destaca, prova que ainda há pessoas essencialmente boas no mundo.

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